Os 9 convidados do Natal
A maior festa do
Ocidente é o Natal. Existem pessoas que, como eu, adoram o período, mesmo não
sendo religiosas. Há os que ficam deprimidos e apresentam até raiva diante da
data. Provavelmente, são os que mais dão importância à noite de hoje, pois sua
ira demonstra uma falta, uma resistência, algo que move o mundo interior.
Cheguei a encontrar uma pessoa que, toda noite do dia 24 de dezembro, ia até o
túmulo da mãe e ficava sobre ele. Disse-lhe: das pessoas que conheço, você é a que
mais valoriza o Natal. Nunca conheci alguém indiferente. A data de hoje é como
o anúncio dos Borg em Star Trek: resistir é inútil...
O Natal envolve nove
personagens. Cada uma tem um significado nos presépios de nossos lares. A
primeira é o aniversariante, causa da festa. É um menino e, como toda criança,
tem o dever de zerar o mau humor e restaurar a esperança. Sim, você, adulto
como eu, tem o direito ao azedume e ao descrédito. Nossa biografia e nossos
erros possibilitam a consciência de que não valemos a pena mesmo. Crianças
surgem como tábula rasa, um novo caderno aguardando a escrita. O menino da
manjedoura, como toda criança, proclama que o mundo recomeça com ele.
A segunda personagem é
Maria, mãe e mulher. Jovem adolescente ainda, vive o incômodo de uma gestação,
pouco dinheiro, acomodação improvisada e ter de cumprir uma ordem governamental
sobre um recenseamento. Para teólogos, crendo ela gerou quem a criou. Para
outros, é o mais próximo que teremos de amor incondicional: a mãe que aposta em
carregar um ser por nove meses e faz o milagre do nascimento. A esperança é o
menino e o amor extraordinário é a mulher-mãe. Todos fomos bebês; algumas foram
mães, qualquer um pode voltar a ter esperança.
A terceira personagem é
José, o carpinteiro. Sente-se protetor de um mistério que o transcende e o
excede. Aceita a gravidez sem causa como aceitará o exílio com a pequena e
sagrada família. Traz o trabalho, a proteção, a missão de apoio e a vocação de
entrega. É homem capaz de ouvir a intuição de sonhos. Aceita ser testemunha e
controlar a vaidade. Como cantava Georges Moustaki, foi você, José, quem
escolheu Maria e seu filho de tão estranhas ideias.
A quarta personagem é,
na realidade, um grupo de gente simples: pastores. Interrompem o trabalho e
fazem uma pausa teológica. São os primeiros a saber do primeiro Natal. São
pobres e testemunhas. Receberam uma mensagem da quinta personagem: o grupo de
anjos que proclama glória a Deus nas alturas e paz na Terra para os homens de
boa vontade. A Bíblia desconfia um pouco de agricultores e exalta pastores,
desde Caim e Abel. No topo dos seres criados e na base da pirâmide social há
alegria pelo ocorrido. Do mais alto ao mais baixo o mistério do Deus-menino
exalta a noite fria e significativa. A manjedoura celebra a vida e integra
seres humanos e mensageiros divinos.
A sexta personagem
simboliza a humanidade. São sábios, magos, posteriormente tornados três reis.
Na tradição medieval, um é branco, outro, negro e o terceiro parece mais
oriental. Grão Vasco, no começo do século 16, pôs um índio no lugar desse
último. Traduzem a boa-nova para todos, a novidade de um Salvador. Carregam
três presentes simbólicos para o menino e para nós: ouro porque ele e nós
podemos ser reis; mirra porque todos morreremos e este é o produto para
acompanhar o defunto. Por fim, trazem incenso porque o menino é Deus. Baltazar,
Melquior e Gaspar são nossos procuradores. A epifania é humana e divina.
A sétima personagem é
outro grupo. Nada falam, apenas aquecem o infante. São vacas e burros próximos
ao berço improvisado. Também há ovelhas trazidas pelo grupo da quarta
personagem. Depois despontam camelos, dromedários, associados à viagem dos
sábios reis. São convidados úteis e silenciosos. Integram a natureza e os animais
à noite que Jesus escolheu. Foram criados antes dos homens e existem há mais
tempo. Toda vida celebra a Vida.
A oitava personagem é
má. Representa o poder ressentido, o medo corrupto e invejoso. Trata-se de
Herodes que não se aproxima da cena, mas ronda o presépio. O puro amor de
Jesus, Maria e José, a simplicidade dos pastores, a humildade angelical, a
busca de sabedoria dos magos e a ação generosa dos animais devem encontrar o
plano político e a violência. Como hoje e há 2017 anos, o Estado corrupto mata
crianças e só se preocupa consigo. Os primeiros a morrerem por Jesus serão os
santos inocentes assassinados pelo medo do tirano.
A nona personagem é das
mais interessantes. Quando você olha um quadro como a Adoração dos Magos, de
Leonardo da Vinci ou quando visita o extraordinário presépio napolitano do
Museu de Arte Sacra de São Paulo, ela está lá, a personagem não retratada: nós.
Somos a testemunha invisível da cena descrita em Lucas. Somos a plateia-alvo da
cena e da missão do menino. Somos a nona personagem que pode aprender com José,
com Maria ou até com Herodes. Podemos ter a humildade do menino sobre a palha
ou a maldade dos soldados executando inocentes. Somos parte do drama e temos
escolha sempre.
Hoje terei o primeiro
Natal sem minha mãe. Foi ela que me ensinou o amor à festa. Passo adiante o que
recebi com tanta generosidade. Boas festas para todos os filhos e para todas as
mães e que, ao menos nesta noite feliz, haja paz na Terra. Como eu disse no ano
passado, ninguém é obrigado a ser feliz hoje. Igualmente, ninguém é obrigado a
ficar deprimido. Que as crianças nos eduquem e nos permitam ter esperança.
Feliz Natal!
Leandro Karnal -
Caderno 2 - P. C7 - O Estado de São Paulo - domingo, 24 de dezembro de 2017.